(A)Luisa
I
Não sei se minha avó tinha olhos d’água. Quando penso e tento aproxima-la da minha memória, lembro dos seus pés. Acredito que pensa-la mesmo só é possível a partir dessa parte monumental da sua anatomia. Talvez por ter sido está a visão a última imagem que vi.
Pés inchados, cheios de sulcos e ressecados, com unhas calcificadas e porosas, pés que transitaram por lugares que não suspeito, pés que me lembram que pensar nela é lidar antes com o desconhecimento.
Eram os mesmos pés que a punham de pé antes do nascer do sol, em frente ao fogão, e que arrastavam o corpo que levava uma vassoura, roupas, baldes, quitutes, doces e denunciavam o cansaço, a má circulação e as complicações de saúde que viveram com ela, pelo tempo da minha memória.
Pés que, mesmo não denunciando como e por onde andaram, para mim sempre foram casa e que me lembram da impossibilidade de esquecer.
II
A Luíza,
Há tanto tempo não te vejo… vez em quando desengaveto tuas cartas e te sinto mais presente!
A casa hoje despertou mais vazia dos teus passos que de costume. Ainda é difícil, juro!, não ser acordado pelo cheiro desagradável de tuas frituras. Tu vês, a privação é algo que põe a gente pelo avesso! Avesso do quê? Palavra estranha essa, quando a gente pensa que a falta também pode ser abundância… e eu sinto,
Saudade
J.
P.S. Escreve-me, qualquer coisa, que vendo tua letra posso fingir que te leio.
III
José passou trinta anos escrevendo cartas para Luíza, a pesar de nunca ter ido a sua casa. Ela, por sua vez, nunca as abriu, porque sabe que saudade quando poderia haver presença é invenção e a sua, a si basta.